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VIVER O MOMENTO?

«Viver o momento» é um tema sobre o qual vagueio em pensamento de quando em vez. Mais ainda à medida que o tempo passa e a vida me transmite ensinamentos, dos bons e dos menos bons!

O facebook está recheado de frases como essa, reclamando que a felicidade está em viver os momentos ao máximo, normalmente referindo-se às paixões e relações amorosas como se de uma verdade absoluta se tratasse. Não o contesto totalmente. Também eu vivo o momento! Mas há quem vá mais longe e viva «em função do momento» . Disso sim, discordo em absoluto! À minha volta observo dezenas de exemplos de como essa é uma opção errada, que no entanto não julgo porque também eu já segui em tempos esse caminho… para meu arrependimento.

Nos dias de hoje tudo acontece rápido demais, todos anseiam por escapar a um quotidiano difícil, fantasiam uma brecha que os eleve ao Éden, procuram o que não querem mas é imediato, atraente, de satisfação rápida…um fastfood saboroso ou um invólucro bonito. É arrojado, excita, satisfaz…serve! «Por isso…vamos aproveitar e viver o momento», pensamos. A vida transformou-se num hipermercado de relações sem futuro. Muita parra, pouca uva, mas funciona e resolve no imediato.

O problema é quando o “momento” termina! O que restou? Deceção, porque o “produto” vinha numa embalagem fantástica mas a qualidade deixava muito a desejar! Não seria melhor ter ido à mercearia? E se tivéssemos dado uma oportunidade à menos atraente das opções? Não teríamos ficado melhor servidos? Não teríamos percebido que era este o tal…do gostinho especial? Será que não sabíamos, quando optámos pelo rótulo mais chamativo, que o mais certo era que ele não nos proporcionasse mais do que um “momento” de prazer fútil e passageiro?

Um hambúrguer no Mcdonalds sabe bem de vez em quando, tem uma imagem cuidada que desperta uma vontade instantânea de devorar…mas saímos sempre com a sensação que tudo o que dali tirámos foi apenas um “momento” de prazer breve e inconsequente, que não fica, não preenche, por mais que daqui a uns dias nos apeteça lá voltar! E voltamos, parvos!!!

Pode parecer uma comparação grosseira, mas acredito que nas relações acontece o mesmo. Muitas vezes deixamo-nos levar por momentos com poucas certezas e muitas dúvidas, logo sem verdadeiro sentido. Mas lá vamos nós pelo corredor do hipermercado de mãos dadas com o que sabemos de antemão não nos irá satisfazer, mas ansiosos por o provar!

Vivemos em função do momento e não levamos para casa o que verdadeiramente queremos. Mentimos a nós e aos outros. Depois, queixamo-nos, choramos no ombro dos amigos, perdemos apetite, ficamos revoltados, marcados e gritamos ao mundo que fomos vítimas de publicidade enganosa!

Esta é a minha visão, não a imponho a ninguém! Afinal, este é o meu blogue, aqui digo o que me apetece e só lê quem quer.

Para mim, viver em função do momento não chega! O momento é que tem de viver em função das pessoas.

Detesto hipermercados, prefiro mercearias. Troco um McDonalds por uma tasca agradável e acolhedora. Não deixo de acarinhar os momentos, mas com qualidade e a convicção de que o melhor para nós não tem de vir embrulhado em papel fino e elegante. Não tem de ser imediato, arrojado, louco, excitante, desafiante… só porque sim. Tem de ser acima de tudo verdadeiro, apaixonante, constante! Se tudo isso existir, o resto vem ao de cima.

Só nessa altura vamos deixar de viver em função do momento e, antes, começar a provar verdadeiramente os momentos, nunca com certezas (porque não existem), mas com um sentido que vai mais além da satisfação imediata! Esses sim, são os momentos que realmente valem a pena viver ao máximo!

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ANO NOVO…E ELA

Nunca liguei muito à noite de passagem de ano! Adoro o Natal porque sempre o associei a uma festa de família, e o meu aniversário, porque é uma boa desculpa para juntar amigos, sempre demasiado ocupados. Mas o Ano Novo…esse sempre me disse muito pouco.

Talvez porque nunca encontrei um motivo real para festejar a entrada num ano novo como algo de especialmente relevante. Não que me causasse algum tipo de nostalgia, mas porque sempre encarei o dia seguinte como uma folha em branco para buscar a concretização de novos sonhos. Nunca precisei da desculpa de uma festa de viragem do ano para ganhar alento ou esperanças renovadas. Faço isso todos os dias, porque sonho imenso acordado!

Mas tudo mudou naquela noite! Porque ELA surgiu do nada!

O bar não estava cheio, mas o ambiente era agradável guiado pela música rock do final dos anos 80. Penso que tocava o Sweet child O’ Mine, dos Guns N’ Roses. Sentada numa mesa, junto à porta, lá estava ELA. Sozinha, mas iluminada por uma qualquer luz resplandecente que a tornava impossível de passar despercebida…pelo menos aos meus olhos. Olhei para o relógio, faltavam 35 minutos para a meia-noite. Haveria fogo-de-artifício daqui a pouco, mas estava tão frio lá fora que já tinha posto de parte a proposta dos meus amigos para uma saltada ao centro da cidade com o objetivo de observar os céus iluminarem-se para receber um novo ano.

A opção acabou por ser consensual. Decidimo-nos antes por abrir uma garrafa de champanhe num bar que nunca tinha feito parte dos nossos planos para aquela noite.

Podíamos ter-nos sentado em qualquer mesa, as opções eram várias, mas acabámos sentados junto DELA. Talvez porque tivesse mesmo de ser.

Rimo-nos uns com os outros, trocámos conversa fiada, dissemos asneiras…tudo o que os amigos gostam de fazer, exatamente porque não precisam de fazer mais nada, apenas ser eles próprios!

A dona do bar conhecia um dos meus amigos e também a ELA. Aproximou-se de nós e exigiu de voz animada que tomássemos bem conta da amiga. ELA sorriu com uma naturalidade que me apanhou desprevenido. A voz serena e tranquila disse-me «olá, eu sou a Carolina»…mas aquilo que eu ouvi foi uma coisa parecida com «fica»! Talvez porque fosse o que eu queria ouvir…e já vos disse que sonho acordado!

De repente…fui sugado por uma sensação nova, precisava de a ouvir novamente.

ELA olhava para o telemóvel…e eu para ELA, desejoso da oportunidade para iniciar um diálogo!

Eram 23h30. Perguntei-lhe novamente como se chamava (sim…eu já vos disse que não tinha ouvido da primeira vez, não disse?) ELA repetiu o nome e eu disse-lhe o meu. Poucos minutos depois, já tínhamos falado de tudo um pouco, entre gargalhadas das mais sinceras, sem artifícios ou esforços para agradar um ao outro. Depressa senti que já a conhecia, mas na realidade, o que penso que via nela era eu próprio, como se estivesse a adivinhar o conteúdo da minha alma, sem nunca me ter visto antes. Sentia os sorrisos atrevidos dos meus amigos e conseguia nas minhas costas perceber comentários do género: «já foste!», mas continuámos e continuámos… até a meia-noite chegar!

As doze badaladas passaram e, pela primeira vez em muitos anos, não comi uma passa! Não que acredite muito nelas. Mas, afinal, faziam parte de uma tradição que eu havia herdado dos meus pais.

Não faço ideia com que pé entrei, tenho a certeza que não vestia nada de azul, e garantidamente não subi a nenhuma cadeira com uma nota na mão para pedir dinheiro a um qualquer santo chamado ANO NOVO! Limitei-me a levantar um copo de champanhe e brindar com quem estava à minha volta, incluindo com ELA. Sem rituais…o ano começou como os últimos minutos do anterior tinham terminado: Em paz e com um sorriso nos lábios. E rapidamente retomámos a conversa interrompida por breves instantes.

Durou mais uma hora até tomar a verdadeira consciência de que estávamos literalmente num ano diferente. Não podia saber o que aconteceria amanha, ou depois. As páginas do meu futuro continuavam em branco, mas eu já sabia o que lá queria ver escrito! Fiquei-me pelo TALVEZ, que pode ser tão angustiante como reconfortante, porque mais vale um talvez do que um desejo concreto que nos desiluda por não ser concretizado! Trocámos contactos…EU e ELA. Despedimo-nos. Mas uma parte DELA continuou comigo e espero que também ELA tenha levado um bocadinho de mim.

Já lhes disse que nunca gostei muito da noite de passagem de ano? Bom…já não tenho as mesmas certezas! Porque TALVEZ…apenas TALVEZ…esta possa ter sido a noite que vou querer lembrar e celebrar por muitos e muitos anos.

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POSSO VOLTAR A LER-TE ?

Resumi-te num segundo. Soube logo que eras o início, o meio e o fim. Mas isso não chega!

O que mais ambicionava era ler o livro completo. Poder saborear as palavras, as frases, os momentos, a prosa solta e excitante que só tu conseguias criar, virar-te página a página por entre os meus dedos sequiosos de ti, sempre naquele constante delírio de descobrir o que ia acontecer a seguir, sabendo que eras minha e apenas eu te podia ler. Foi o que fiz! Devorei-te com intensidade sem desgrudar, mas com a certeza de que ia ter de parar algures, porque não podemos querer ler tudo de uma vez ou termina cedo demais. E nesses períodos de pausa, imaginava-me a respirar o calor que deixavas entranhado em mim sempre que cada capítulo findava e ao mesmo tempo a exaltação de saber que a qualquer momento podia regressar a ti e descobrir-te mais. Mas sem pressas, porque a saudade também é necessária para que possamos enfrentar o capítulo seguinte convictos de que o vamos saber aproveitar.

Era assim que te lia e te gostaria de ter continuado a ler. Mas não aconteceu.

Algures a meio de ti, perdi-te! A trama talvez se tenha adensado demais, o resto da vida interrompeu a leitura vezes demais, ou simplesmente deixei de entender as frases que criaste em mim e perdemo-nos um do outro em mal entendidos, sem sabermos como nos podíamos reencontrar.

Mas como um qualquer ávido leitor que sabe o livro que teve em mãos, aquele que leu algo que o conseguiu fascinar, empolgar, o fez sonhar e envolver, gosto de continuar sonhar que ficou um marcador numa determinada página e que tu continuas aqui, junto de mim, à espera que te possa voltar a ler.

Parámos a nossa parceria num momento difícil, num capítulo tempestuoso.

Como todos os livros, a vida nem sempre é uma linha continua com destino à felicidade. Os protagonistas começam por viver uma vida normal e algo acontece. Vão ter de encontrar soluções, ultrapassar obstáculos, cair e voltar a levantar-se. E quando os romances são bons, ele sabem encontrar caminhos para um clímax de paz, reconciliação e na maior parte dos casos fortuna.

Talvez quando te voltar a ler descubra que o capítulo seguinte é o início dessa caminhada feliz. Ou talvez não! Também como os livros, o destino encarrega-se de nos criar surpresas ao longo do caminho e resta-nos não desistir, continuar a ler e esperar pelo melhor.

Apenas uma coisa distingue a vida de um livro: Na vida não podemos saltar para a derradeira página e saber como tudo vai acabar. Mas para quê fazê-lo? Vamos perder o melhor de tudo…teremos um final sem história. E antes um final com uma narrativa que nos engoliu num turbilhão de emoções e nos proporcionou o sabor da existência, do que um simples “FIM” sem nada para o justificar, sem vida, sem nós.

O meu polegar e indicador estão prontos para te arrancar o marcador, com energia renovada, dedicação e o nervoso miudinho que só tu consegues criar em mim. Voltar a ler-te seria como começar tudo de novo, com a paixão renascida. De todos os livros do mundo foste tu quem escolhi ler até ao fim. E só tu e eu sabemos porquê! Mas antes preciso de saber: Estás pronta para que te leia?

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ABRAÇO

Conheci-te num abraço!

A noite iluminou-se. O tempo parou. As palavras secaram, porque não eram precisas.

Tudo o que tinhas para me dizer foi dito num sussurro sem que os teus lábios precisassem de se mover. As melhores coisas da vida dispensam palavras. Porque elas voam, mas os momentos perduram para a eternidade.

O calor da tua pele contra a minha esquentou-me a alma.

Não era o calor de verão, mas o calor de inverno, aquele inesperado que surge sem aviso. Aquele que te apanha desprevenido e te impregna de um prazer tão intenso que parece irreal.

Também me conheceste a mim nesse abraço? Sentiste o murmúrio das palavras que não te disse? Não sei, mas acho que sim! Espero que sim!

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O APAGÃO

Ano: 2040

O dia do apagão foi o melhor da minha vida!

Nasci em 2014. Tenho 26 anos e chamo-me João! Quase não conheci outra realidade senão aquela que vivemos até ao dia de ontem, o dia em que o FaceLife encerrou…o dia do apagão geral. Olhando para trás, não me recordo bem dos tempos em que não se vivia online…apenas de pequenos momentos muito breves.

Os meus pais tiveram o Facebook e eu o FaceLife.

No tempo deles, apesar de tudo, ainda havia uma interação que por vezes proporcionava encontros pessoais…ainda havia vida, convívio, as pessoas encontravam-se no trabalho, tinham de sair de suas casas. Mas foi o início de uma nova era, a era da dependência online, que cresceu e cresceu à medida que o Mundo mudou.

Em 2019, cinco anos depois de eu nascer, as coisas ficaram feias. A crise financeira estendeu-se à escala mundial. Depressões, suicídios, isolamento, pobreza…as estatísticas de tudo o que era negativo aumentaram de forma exorbitante!

A minha família ainda aguentou enquanto pode, mas foi engolida pela maré, tinha eu 10 anos. Passou muita gente a viver nas ruas, em acampamentos improvisados e os governos caíram, um a um, para dar lugar a uma única entidade que mudou tudo para sempre .

Chamaram-lhe FaceLife.  Uma hiper-evolução do antigo Facebook…mas a uma escala absolutamente incomparável. Já não era apenas uma rede social! Era A REDE SOCIAL! E ninguém precisava de teclar. O kit que nos chegava a casa era composto por um chip que aderia ao pulso como uma sanguessuga. Acedia ao nosso sistema imunitário e permitia um contacto visual com qualquer «AMIGO» – ou LIFER como passámos todos a ser conhecidos -, através de um par de óculos que transmitia uma imagem vídeo, com a vantagem da ligação permitir todo o tipo de interação sensorial. Do olfato à simulação do toque e à ativação dos sentidos que nos dão a sensação de prazer ou dor. Só tínhamos de dizer o nome em voz alta de qualquer Lifer da nossa lista, e o contacto era direto, desde que o recetor estivesse disponível. Ninguém deixava a casa. Não era necessário, nem sequer permitido. Podíamos jogar à bola com amigos online,  passear num jardim com quem quiséssemos, ir à praia, frequentar o ginásio, jantar fora com a namorada, tudo online. Enfim…o mundo virtual, era aquele que conhecíamos!

De alguma forma a sociedade parecia acomodar-se e sobreviver. Robots controlados por Facers faziam todos os trabalhos que pudéssemos imaginar, da construção civil à medicina. O que permitia, por exemplo, que um MEDI FACER (médico para os antigos) pudesse trabalhar num hospital do Dubai, fazer uma operação na China e horas depois atender um utente com gripe em Portugal. O mundo encontrava-se de tal forma ligado que podíamos estar em qualquer ponto do mundo ao mesmo tempo. Os melhores (ou mais dedicados) podiam até viajar de vez em quando, fisicamente, até aos locais que só tinham conhecido online. Um prémio com que todos sonhavam, mas apenas alguns conseguiam conquistar.

Além disso, todos os aderentes ao FaceLife, mesmo que não tivessem trabalho, tinham direito a determinadas benesses: Quanto mais tempo estivessem online, mais vantagens garantiam. 5000 Vposts (contactos virtuais áudio e video) por mês, permitiam um determinado número de compras na loja do Facelife, onde se podia adquirir de tudo, entregue em casa sem custos adicionais por um estafeta robotizado, controlado, como já devem ter imaginado, por um Lifer, cuja profissão era exatamente essa: fazer entregas porta à porta.

E procriar? Bom…todos os anos havia o dia da VIDA (o dia do LIFER).

Todos, independentemente da idade, raça, cor, religião, crença política…podiam estar fisicamente com quem quisessem, durante 24 horas. Era o dia mais fantástico do ano para mim e foi assim que plantei a semente que viria a dar na minha filha, a pequenita Sara!

Conheci Diana, a minha mulher há cinco anos. Online, claro.

Apaixonámo-nos, fizemos amor virtual por centenas de vezes. Soube que era a mulher da minha vida ao primeiro contacto! No ano passado, no dia do LIFER, decidimos que era o momento para acrescentar um elemento à família. Vimo-nos pela primeira vez, toquei-a, beijei-a, fizemos amor…mas fizemos amor a sério! Ejaculei em cinco minutos, porra! Mas foi a melhor sensação que alguma vez experimentei! Claro que nos meus encontros virtuais com amigos, no dia seguinte, afirmei que o sexo selvagem tinha durado a noite toda e ela tinha tido, no mínimo, uns dez orgasmos múltiplos! A gabarolice masculina é coisa que nunca muda!

O crime diminuiu brutalmente. A razão? As pessoas simplesmente nunca estavam juntas, à exceção do dia do LIFER, onde todas as cautelas das forças policiais eram poucas. Apesar de muitos rebeldes recusarem aderir ao FaceLife, aos poucos tornava-se impossível sobreviver sem ele. Como podíamos adquirir bens essenciais se não estivéssemos Online?

A polícia do FACE estava atenta a ajuntamentos e aos hackers que conseguiam por vezes acessos proibidos às lojas online, onde adquiriam indevidamente produtos como a água, ou o pão. Não havia lojas físicas…velhos tempos esses, que experimentei por tão pouco tempo! Estou a sorrir agora…ainda me lembro de ir passear com a minha mãe a centros comerciais. Via-se tanta gente, havia tanto barulho. Mas era tão giro! Diferente.

E então, há três dias, tudo mudou! De repente, tudo deixou de funcionar! Perdemos acesso ao FaceLife num clique.

O que aconteceu? Não sabemos, ninguém sabe!

Mas nesse dia, saí de casa para a rua…eu e mais milhares de pessoas em Lisboa…milhões e milhões por todo o mundo.

Olhámos uns para os outros como estranhos…mas os sorrisos começaram a surgir nas faces de cada um de nós lentamente. Abracei gente que não conhecia, reconheci outras caras que nunca antes tinha visto pessoalmente.

E, ao fundo, como se de repente o cenário à minha frente se tivesse desfocado para se voltar a focar novamente num ponto especifico, vi uma mulher com uma criança ao colo.

Reconheci a Diana e a pequena Sara. Riam as duas para mim…com um sorriso que nunca antes tinha lido num rosto, um sorriso de liberdade, felicidade total.

Olhei para o braço…o chip estava a descolar do pulso direito. Agarrei-o com a mão esquerda…suspirei fundo e deixei-o cair no chão, antes de o esmagar com a perna!

Agora sim, ia começar a viver!  

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SOPRO INVISÍVEL

A mulher está sentada no banco central de uma fila de três lugares, numa carruagem do metro em andamento. Tem a face semi-oculta, cabisbaixa. Não lhe consigo ver a expressão. Mas sei o que ela está a passar.

Não lhes vou dizer o nome pelo qual sou conhecido, pelo menos não ainda. Mas pode dizer-se que sou o sopro da vida…a brisa que corre pelo mundo, numa viagem sem tempo, nem espaço. Uma viagem cuja direção é alma de cada um de vós. Tal como esta composição do metro, também eu faço paragens regulares, mas as minhas estações são as pessoas, todas elas diferentes e ao mesmo tempo iguais. São paragens curtas. As portas de cada um abrem-se a mim por breves segundos, os suficientes para que possa espreitar, entender e curar. Depois, voltam a fechar-se para que prossigam no caminho que lhes foi destinado.

A mulher de que comecei por lhes falar chama-se Renata, sei agora. Acaba de receber a notícia que o homem que sempre amou desde miúda já não a deseja. Há um sentimento de solidão, de desânimo e injustiça. É como se à sua volta todo o mundo se estivesse a desmoronar. Tem a certeza de que, a qualquer momento, também ela será engolida pelos escombros.

Em pé, agarrado a uma argola presa no teto e a tentar manter o equilíbrio está Francisco. Desempregado há duas semanas. A mulher e os dois filhos ainda não sabem. Espera todos os dias até ao fim da tarde para voltar a casa, esperando que ninguém repare. Não sabe como lhes dizer a verdade! Ultimamente aguarda parte do tempo num bar do outro lado da cidade, onde ninguém o conhece, acompanhado por dois ou três copos de whiskey e um barman desbocado.

A poucos metros está Marco. Casado. Tinha uma amante, já não tem. A mulher descobriu. Explicou que já não se sentia vivo ao lado dela há anos, mas não sabia como dizer-lhe, não tinha coragem. Foi um cobarde. Precisava de voltar a perceber como era o toque de uma mão carinhosa, de um beijo com paixão. Sabia que não estava arrependido, mas tinha-lhe dito que sim. Não serviu de nada. Foi corrido de casa. Está a dormir no apartamento do irmão há três dias.

A mulher atrás de si, sentada junto ao corredor central, está feliz. Joana conheceu um homem fantástico há dois dias, depois de três anos sem uma relação porque nunca ninguém servia, ninguém a conseguia entusiasmar. Agora, pensa nele a toda a hora. Mas será que ele gosta dela da mesma forma? Será que não? Há borboletas a saltar-lhe na barriga. Bom…acho que aqui não me vou deter por muito tempo, pelo menos para já.

Salto para o velhote à sua esquerda, sentado e encostado à ombreira junto ao vidro, de olhos embaciados a observar o seu próprio reflexo. Vive sozinho. O filho não lhe liga há meses, esta é a mesma volta que dá todos os dias, porque nada mais tem para fazer e ninguém com quem partilhar o dia.

À frente, sorridente, está Filipe. Tem 14 anos e acaba de comprar um skate novo! Vai surpreender os amigos daqui a pouco… e também magoar o joelho na tentativa de um salto acrobático. Essa ultima parte, ele ainda não sabe! Só eu! Mas fiquem descansados, porque como todos os miúdos, vai recuperar depressa…as dores desaparecem num instante nesta idade. Também não fico aqui muito tempo.

Renata, Francisco, Marco, o velhote, Joana e o jovem skater são apenas uma pequena amostra das várias dezenas de passageiros que caminham neste trajeto, uma parte ínfima dos milhares que por ali passam todos os dias. Viajam todos juntos, mas afastados. Uns dos outros. Os olhares cruzam-se ocasionalmente, às vezes por mais do que alguns segundos, mas rapidamente se direcionam para outros lugares, quase sempre o interior de si próprios. Ninguém se questiona sobre o passageiro da frente ou do lado. Se está feliz, triste, satisfeito, desiludido. A vida é só deles…não dependem uns dos outros! Ou será que sim?

O metro abranda a marcha lentamente até parar. Abrem-se as portas.

Francisco é o primeiro a sair, de cara murcha. Põe o pé na plataforma no exato momento em que o telemóvel dá sinal de mensagem. Não a ouve, porque o ruído de entrada e saída de passageiros é ensurdecedor. Vai descobrir dentro de alguns minutos que tem uma entrevista de emprego. E vai ser contratado.

O aspirante a profissional de skater corre já com um pé no skate. Penso: «Vais precisar de mim um dia destes, miúdo, mas ainda não é o dia»!

Renata tem os olhos húmidos, contínua cabisbaixa, a pensar como vai ultrapassar a perda de um grande amor. Transpõe as portas automáticas ao mesmo tempo que Marco. Esbarram um no outro, ela deixa cair a mala. Entre mil desculpas e muita atrapalhação, ele ajuda-a a arrumar as dezenas de objetos que só as mulheres parecem precisar, até que os dois cruzam olhares. Mas ao contrário do que se podia esperar, não desgrudam. Escusado será dizer o que vai ser feito destes dois!

Segue-se Joana. Está surpreendida! À sua frente tem um homem de fato e gravata, com os braços estendidos e um ramo de rosas vermelhas. «Estava a ver que nunca mais chegavas…já tenho as mãos dormentes!», diz com um sorriso, antes de a presentear com aquele abraço enternecedor que só a paixão consegue explicar.

Resta o velhote. Sai lentamente, apoiando-se numa bengala, enquanto um som intermitente alerta os passageiros que a viagem tem de prosseguir. O skater voltou para trás…para segurar a porta e ajudá-lo a sair em segurança. Faz um sorriso acriançado: «Já está avôzinho! Dê corda a essa bengala!», diz antes de seguir caminho a voar.

O velhote também sorri, agradece com a voz baixa e embriagada, mas o miúdo já está longe. Pensa: «Avôzinho! O que eu não daria para ouvir esta palavra da boca do meu próprio neto, o neto que provavelmente nunca vou ter!». Descansa velhote. Esta noite, quando chegares a casa, vais ter uma surpresa. O teu filho e nora vão finalmente ser pais depois de dois anos duros de tratamentos. Finalmente vai acabar-se a vergonha de terem de assumir que talvez nunca te pudessem realizar o sonho de uma vida. Hoje vão todos chorar de alegria, num abraço…a quatro!

Não tenho sorriso, mas se tivesse viveria com ele na face a toda a hora. Adoro o que faço!

Há uma nova leva de passageiros que entram nesta estação, mais trabalho para mim. As portas fecharam. Por onde vou começar? Bom…talvez por lhes dizer a vocês, espetadores dos últimos minutos, tal como o prometido, o nome por que todos me conhecem sem nunca me terem visto. Eu sou a ESPERANÇA! E vou cá estar quando precisarem de mim para seguirem o vosso caminho. Precisam de uma boleia?

 

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POSSO BRINCAR CONTIGO?

O sol queima-me a pele, mas não é desconfortável.  Há uma brisa leve que esvoaça e ameniza o calor. O som das vagas sucessivas de pequenas ondas a abraçar a areia ecoa pelo ar, misturado com o burburinho de gente feliz.  Ao longe oiço uma voz pouco distinta anunciar a chegada da melhor bola de Berlim. Suspiro e sorrio. Deixo-me levar pelo momento relaxante de um dia de praia. BRINCAR2

Olho para o lado. A minha filha está a poucos metros, armada de um balde e uma pá. 
“A construtora civil mais gira que alguma vez conheci”.  Já cavou as fundações para o castelo que me tinha prometido há momentos. Volto a esboçar um sorriso. Sempre que olho para ela, o sol parece mais lindo! A lua brilha mais intensamente!

De repente solta-se uma voz. Desconheço se é masculina ou feminina, mas, tenho a certeza, é de criança.  

– Posso brincar contigo?

É um rapaz. Terá cinco ou seis anos. Aproximadamente a idade da minha filha. Franzino, de calções vermelhos, loiro e já com cor de vários dias de praia.

A Mónica nem chega a responder, um aceno e o acordo está selado. Segundos depois já os dois juntaram a parafernália de equipamento de construção, uniram esforços e criaram a empresa Mónica e João, Lda!  Riem, conversam, debatem… tudo como se conhecessem há anos!

Observo calado. E maravilhado com a doce ingenuidade da meninice. Abstraio-me por momentos. Penso no quanto todos crescemos para nos tornarmos tão individualistas,  desconfiados, até apáticos. Vivemos a vida a recordar tempos de criança, para depois agirmos como adultos, sem esperança nos outros e até em nós.  Não devia ser ao contrário?  

– Peço desculpa… O meu filho não incomoda,  pois não?  –  é a voz de uma mulher que interrompe as minhas divagações. Respondo que não, ela sorri e regressa para a toalha que a aguarda ali mesmo ao pé. Mas porque havia de incomodar?  A Mónica está feliz, fez um amigo,  como apenas as crianças sabem fazer. Não pensou, fez!  E o João seguiu o mesmo caminho. De certeza que não lhe passou pela cabeça levar uma nega da Mónica!

O que me leva à questão do raciocínio.  Deus ou quem quer que imaginou este mundo devia ter abolido os adultos porque ponderam demais, calculam tudo. Avaliam os outros, julgam, aprendem a mentir, a isolar-se, a enganar, a corromper…esquecem-se da criança que foram um dia. Ganham defesas, traumas  e tornam-se incapazes de voltar a acreditar que a ingenuidade também nos transporta para coisas boas. Crescem… e tornam-se parvos!
“A vida faz estas coisas”, dirão vocês. Mas o que raio é a vida senão nós próprios!  Nós criamos a vida, abraçamo-la, decidimos quem somos e vamos ser.  A alma é nossa, e de mais ninguém! 

Podemos recuperar muita da nossa esperança ao observar as crianças.  Elas ensinam-nos muito sobre nós próprios, todos os dias. Mas será que queremos aprender?  Acho que não. Preferimos o conforto falso do “eu” e não do “nós”. 

Olho para a mãe do João. É ruiva,  terá uns 37 anos,  atraente. 
Não lhe vejo os olhos,  usa óculos escuros.  Penso: e se fosse agora ter com ela e lhe pedisse para brincar comigo? A ideia faz crescer em mim uma gargalhada sem som!  Esqueço-me que sou adulto e todas as frases ganham novas conotações.

Pois!  Deixa-me continuar deitado, a observar os dois miúdos brincar como se não houvesse amanhã.  Aproveitem bem,  porque um dia, infelizmente,  o amanhã vai chegar! 

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VIDAS ESQUECIDAS

«Comecei a tremer incontrolavelmente e (1)

Arredores de Lisboa, 23h35

«O impacto foi breve mas implacável. Estilhaços de vidro cortaram-me a face, entranhando-se na pele como um enxame de abelhas a investirem em uníssono.

Perdi o controlo do carro e durante segundos que pareceram horas recordei a sensação de terror da minha primeira e última experiência numa montanha russa. Esqueci a noção do tempo e do espaço enquanto o Toyota dançava uma valsa tenebrosa, libertando um odor a borracha queimada que invadia o ar e me causava uma sensação de náusea e asfixia. De repente, o silêncio. Mais do que silêncio, um vazio. Não conseguia raciocinar e demorei alguns minutos até recuperar o discernimento. Tentei abrir os olhos, mas fui convencido a adiar esse momento. «O que pensas encontrar?», segredava-me a voz da inquietude. «um sonho do qual vais despertar assim que levantares as pálpebras?»

Respondi que sim em voz alta, repetindo-me vezes sem conta, na esperança de que, se acreditasse o suficiente, acordaria em poucos segundos no conforto da minha cama. Tudo não passaria de um pesadelo, um simples devaneio de uma mente perturbada. Tossi convulsivamente, libertando os pulmões do ar nauseabundo e preparei-me para o inevitável».

O som do rádio despertador cortou o silêncio com o último tema de Shakira e um manto de alívio cobriu o peito apertado de Rui. A perspectiva de um longo dia de trabalho era, naquele momento, a mais sedutora das ideias. Foi então que abriu os olhos.

A voz sensual da popular cantora era real, mas nada mais parecia ser.

A música não saia do rádio-despertador, mas sim da aparelhagem sonora do automóvel, um MP3 que mandara instalar há poucos dias. Vagas sucessivas de ar gélido atacavam-lhe o rosto através do espaço que até há poucos minutos se encontrara protegido pelo vidro frontal da viatura. O coração começou a bater mais rápido e, quando finalmente moveu o corpo dorido, os pedaços de vidro afiado que lhe impregnavam o cabelo encaracolado voaram em todas as direcções. Teve de forçar a abertura da porta com ambas as mãos, cambaleando para o exterior, até sucumbir no asfalto. Ali deitado, com a respiração ofegante, procurou fazer algum sentido do que acabara de suceder, mas sem sucesso. A escuridão da noite repousava ameaçadoramente diante de si, celebrando o doce sabor da vitória.

Não havia estrelas no céu e até o suave foco do luar que o seguira durante a viagem parecia ter sido engolido pelas trevas. Pelo canto do olho, conseguia vislumbrar uma luz ténue, provavelmente oriunda dos faróis do seu carro. Lentamente, virou a cara naquela direcção e confirmou a teoria. Seguiu com o olhar o trajecto da luz que terminava poucos metros à frente, na berma da estrada. O terror regressou quando viu o que parecia ser um vulto inanimado. Levantou-se o mais rapidamente que pode e uma sensação de calor invadiu-lhe o corpo. Como um zombie, percorreu os metros que o separavam do alvo de todas as suas atenções. Lágrimas de sangue deslizavam-lhe pelo rosto, deixando um rasto vermelho pelo caminho. À medida que se aproximava, o calor aumentava. Naquele momento, sentia-se um bombeiro prestes a penetrar uma parede de fogo sem uma mangueira para amenizar o inferno.

«Estava agora a dois passos daquilo. Sim, daquilo, porque até ao último momento rejeitei a cruel realidade. Talvez fosse um saco de uma qualquer mercadoria que inadvertidamente tombara de camião, uma rocha cujo formato podia ser confundido com um ser humano ou um infeliz animal abandonado à sua sorte no meio da estrada.

Demorei, porém, poucos segundos a aperceber-me de que nenhuma destas hipóteses correspondia à realidade. À minha frente, prostrado numa posição que fazia lembrar uma cruz suástica, encontrava-se o cadáver de uma mulher, de olhos muito abertos e inexpressivos. Comecei a tremer incontrolavelmente e senti as pernas cederem. Cai de joelhos a centímetros daquele corpo. A centímetros de Sílvia, a minha mulher».

23h50 

Caminhava junto à estrada há mais de dez minutos quando uma luz forte lhe roubou a visão momentaneamente. Fechou os olhos e sentiu uma estranha sensação de enjoo. Foi acometido de tremores e a teve a nítida impressão de que tudo à sua volta se tinha movido, como se o Mundo em seu redor estivesse em busca de sintonia, orientado por um gigantesco controlo remoto. Perdeu as forças nas pernas e cambaleou como um bêbado durante alguns segundos, mas rapidamente recuperou o equilíbrio e voltou à normalidade. Quando ganhou coragem para reabrir os olhos percebeu que a misteriosa luz, agora mais intensa, pertencia aos faróis de um carro que se aproximava na faixa oposta da via e esbracejou em desespero rezando para que quem quer que fosse se apercebesse da sua presença e viesse em seu auxílio. A viatura encostou logo em seguida e do interior saiu um jovem que aparentava pouco mais de 20 anos, fardado de polícia. Era magro e parecia ter sido passado a ferro de tão polido. Atravessou a estrada, sem pressas, exibindo um sorriso contido enquanto se aproximava.

– Boa noite – disse, ao mesmo tempo que batia a continência – Sou o agente Patrício. Posso perguntar-lhe o que faz aqui a estas horas da noite? – continuou.

As lágrimas correram-lhe pela face e Rui teve dificuldade em articular as primeiras palavras.

– Eu..eu…um acidente…a minha mulher..sou um assassino, um assassino… – por esta altura já chorava descontroladamente.

O guarda colocou-lhe a mão sobre o ombro como se o tentasse reconfortar.

– Tenha calma. Diga-me o que aconteceu. – respondeu Patrício.

23h55

Rui estava sentado banco de trás de um carro de polícia. Apesar das insistentes reclamações, fora obrigado a soprar num balão para provar que não estava alcoolizado. Era a primeira vez que tal acontecia mas sentia que o merecia. Afinal, tinha acabado de assassinar a sua própria mulher, embora não se recordasse de como tudo se havia passado, provavelmente porque desmaiara após o acidente.

Depois, Patrício dirigira até ao local do desastre e tinha-lhe dito para não sair do carro, instrução que acatou sem discutir porque tudo o que menos queria era voltar a encarar o estado em que Silvia tinha ficado. Através do vidro ligeiramente embaciado, podia ver Patricio junto ao Toyota. Olhava em redor como se procurasse algo ou alguém, embora mantivesse a mesma face descontraída e de certa forma apaziguadora que o contemplara poucos momentos antes. O guarda regressou em seguida ao carro e, após ocupar o seu lugar no banco de condutor, desviou o olhar para o vidro retrovisor onde um rosto aterrorizado se refletia:

-Vamos até à esquadra, são só cinco minutos de viagem.

– Então e o 112? A ambulância? Não pode deixar a Júlia ali assim. – gritou Rui enquanto amparava a cabeça com as mãos, entrelaçando os dedos no cabelo despenteado em sinal de desespero.

– Vai ficar tudo bem. Não se preocupe – Respondeu Patrício com a mesma voz pausada. O som do motor a despertar cortou o silêncio da noite. A viatura moveu-se lentamente afastando-se do local do crime e Rui voltou a chorar convulsivamente.

00h23

– Eu matei-a, sou um assassino, um assassino…

Os gritos descontrolados do homem que acabara de dar entrada na esquadra número 21 de Sintra, acompanhado por um polícia, prenderam a atenção do tenente Jorge Vicente, confortavelmente instalado no seu escritório a poucos metros da sala principal, onde a azáfama costumava ser frequente. Para um veterano com mais de 30 anos de profissão, habituado a lidar diariamente com delinquentes, bêbados e doidos varridos sons como aquele não constituíam uma novidade. Num dia normal, teria dado seguimento aos seus afazeres e ignorado o que acabara de ouvir, mas o seu sexto sentido avisou-o de que algo de diferente se passava.

– Então o que aconteceu aqui, Patrício? – Perguntou em voz alta enquanto se aproximava do guarda que tentava sem sucesso acalmar o seu acompanhante.

– Tenha calma, jovem  – continuou – vamos ouvi-lo quando estiver menos nervoso. Quer um copo de água? – Perguntou, antes de dar oportunidade a Patrício de explicar o que acontecera.

Com a respiração ofegante e lágrimas nos olhos, o homem limitou-se a acenar afirmativamente, antes de se sentar numa cadeira.

Sem que fosse preciso pedir, Sara surgiu quase de imediato com um copo nas mãos. «Além de boa como o milho, a nova secretária também é eficiente», pensou o tenente, ao qual um bom rabo de saias nunca passara despercebido.

– Como se chama? – continuou.

– Ru…Rui – respondeu o homem enquanto recuperava o fôlego depois de ter despejado a água pela garganta abaixo de um só gole.  – O meu nome é Rui Santos.

– Encontrei este senhor junto à estrada, a gritar que é um assassino. Fiz-lhe um teste de alcoolémia, mas não acusou nada. – explicou Patrício em modo de sussurro, satisfeito por ter finalmente conseguido articular algumas palavras.

– Oiça, – disse Jorge – porque não me explica o que aconteceu? Magoou alguém?

– Não me recordo de tudo, apenas de ter tido um acidente de automóvel algures à entrada de Algueirão. A minha mulher foi projectada pelo vidro da frente…aí meu Deus. O que fiz eu….

O desespero parecia sincero. «O coitado estava mesmo convencido do que dizia», pensou o tenente. Desviou novamente o olhar para Patrício como se procurasse confirmação no que acabara de ouvir, mas o jovem guarda respondeu com um sorriso atrapalhado e encolheu os ombros. – Não houve nenhum acidente na área. Estive no local que ele me indicou e o carro estava efectivamente lá, mas sem qualquer dano. Não havia ali mais nada, nem ninguém. – explicou baixinho, embora não o suficiente..

– Seu filho da mãe, como pode dizer isso? Ela estava ali, no chão…e o carro todo partido a poucos metros de nós. Ainda sinto o cheiro a borracha queimada na minha roupa e o odor do sangue dela. Mas está tudo louco?. Merda, Merda…- lágrimas salpicavam dos olhos como projecteis perdidos.

Jorge recriminou-se a si mesmo por ter interrompido o que estava a fazer. Não tinha paciência para aturar lunáticos. «Estás a ficar velho, Jorge». – Oiça, o melhor que tem a fazer é ir para casa descansar e…

– Tenente? – gritou a secretária, interrompendo-o. – Tem uma chamada para si.

– Já atendo, diga que aguarde por favor.

– Acho que vai querer atender agora, Tenente…

A voz da Sara soara diferente, como se estivesse a chamá-lo a um canto para lhe contar um segredo. Dirigiu-se a ela e roubou-lhe o telefone das mãos.

– Sim, aqui fala o Tenente Jorge Vicente.

Franziu a testa quando e depois de acenar afirmativamente por duas vezes continuou a falar num tom mais baixo.

Quando Jorge Vicente voltou para junto do guarda Patrício segredou-lhe algo ao ouvido e depois recuou dois passo. Falou com um ar mais descontraído.

– Patrício, leva-o a casa agora. – ordenou antes de se voltar para o auto-intitulado homicida.

– Sr. Rui, vá com calma e descanse. Depois de um bom banho e de uma noite de sono bem dormida, vai ver que amanhã se sentirá bem melhor.

– Acha que vou conseguir dormir alguma coisa? Vocês não vão fazer nada? Então e a minha mulher? Chama-se Sílvia…Sílvia Santos. Não podem simplesmente deixá-la ali. Não estou a acreditar nisto…Deus do céu. – Rui parecia verdadeiramente assustado e a raiva era evidente nos seus olhos.

Jorge Vicente suspirou e sorriu levemente antes de responder às súplicas do homem.

– A situação é a seguinte: Você está desaparecido há dois dias. Não sabemos o que se passou e honestamente não penso que queiramos saber, mas ficamos muito felizes por ver que está bem. O guarda Patrício acompanhá-lo-á a sua casa. Tenha uma boa noite.

– Mas…mas…eu saí de casa esta noite para jantar com a minha mulher…como posso estar desaparecido há dois dias? Não acha que teria dado por isso?

O tenente tinha dado meia volta em direcção ao escritório, mas fez uma pausa momentânea. Quando voltou a face para Rui, os olhos de ambos encontraram-se por segundos e Jorge falou pela última vez antes de retomar o seu dia normal de trabalho:

– Oiça. O guarda de serviço na recepção reconheceu-o na fotografia que nos foi entregue. A sua família está preocupadissima consigo, O guarda Patrício acompanha-o a casa. Passe bem, sr. Rui e tente não repetir este infeliz episódio. Da próxima vez, pode ser que tenha de passar cá a noite.

00h44

O guarda Patrício deixou-o junto á entrada de sua casa, num bairro sossegado de vivendas em Mem-Martins, depois de o sossegar e de praticamente o ter convencido que tudo não tinha passado de uma alucinação sua. «A sua família espera-o. Está tudo bem», tinha dito o guarda antes de lhe abrir a porta e despedir-se. Rui reconheceu a sua casa de imediato. Era a mais bonita de todas. Ainda se lembrava do dia em que a tinham visto pela primeira vez, ele e Silvia, no ano em que casaram. O primeiro ninho de amor e o único até hoje.

Abriu lentamente o portão esverdeado que ligava a rua ao pequeno jardim interior onde pontificavam rosas e tulipas, antes de voltar a fechá-lo atrás de si. «O orgulho de Sílvia», recordou, enquanto pastava os olhos no cenário colorido.

A mulher adorava a jardinagem e não perdia a oportunidade de plantar uma nova semente. Um entusiasmo que era partilhado por Beatriz, a filha de seis anos do casal. Normalmente, a pequena costumava trazer todos os brinquedos cá para fora, para a relva, onde brincava durante a tarde depois de regressar da escola enquanto a mãe arranjava as flores e as plantas. Não havia dia em que Rui não tropeçasse numa boneca ou num peluche antes de atingir o alpendre. A bicicleta ficava sempre junto à entrada, mas hoje não estava lá. «A mãe deve ter-se zangado contigo, minha pestinha», disse para si mesmo com um sorriso. Mal podia esperar por abraça-las às duas.

Procurou as chaves no bolso mas não as encontrou «Porra, devo tê-las deixado no carro», praguejou antes de pressionar a campainha. O coração batia ao ritmo de uma bateria de heavy metal enquanto esperava que Sílvia ocorresse à porta, logo seguida por Beatriz que sempre corria a abraçá-lo antes que tivesse tempo de falar. Lembrou o ritual quase obrigatório que ela o obrigava a seguir: Depois do primeiro abraço, Beatriz mordia-lhe o nariz e desatava rir. «São momentos como este que nos fazem apreciar a verdadeira beleza de estar vivo», pensou.

Ouviu os passos de alguém a aproximar-se. Era o som característico dos saltos altos de Sílvia a ecoar pelo soalho, cada vez mais audíveis. Suspirou, ansioso por voltar a ver o seu sorriso contagiante e afagar-lhe os cabelos longos e ruivos. Já sentia nos lábios o doce sabor dos seus beijos.

Assim que a porta se abriu a alegria deu lugar à desilusão. Recuou subitamente aterrorizado pela inesperada visão. À sua frente estava uma mulher loira, de olhos claros que nunca antes vira.

 

– Pai! oh, meu Deus. Pai! Estava tão preocupada.Estás bem?

Os segundos pareceram anos. Ficou de boca aberta e olhos esbugalhados, incapaz de articular uma palavra sequer. Não estava bem. Como podia estar? A mulher à sua frente não só lhe invadira a casa como acreditava que ele era pai dela. Mas que raio!

– Quem…quem é você?

– Pai, sou a Beatriz.

Rui riu-se de forma forçada e meio enraivecida.

– A Beatriz tem seis anos. Está a brincar comigo? Onde está a Sílvia? – Questionou, parando de rir abruptamente.

O rosto da jovem à sua frente transformou-se. Olhava agora para Rui com ar de aflição.

De repente abraçou-o. Estranhamente, sentiu que havia algo de familiar naquele momento. O cheiro dos cabelos dela, a forma suave como lhe passava a mão pelo pescoço, tudo parecia indicar que… era impossível…não podia ser.

– Eu sei, eu sei. Também sinto saudades dela. Mas já lá vão muitos anos, pai. Tens de olhar em frente, esquecer o que aconteceu…olhar para mim. Vou estar sempre aqui, ao teu lado.

A mulher largou-o, mas manteve-se perante si, fitando-o com os olhos molhados de emoção genuína. Depois, lenta e carinhosamente, Beatriz mordeu-lhe delicadamente o nariz.

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30 MINUTOS

«O som de mensagem recebida interrompeuBrincava com o cabelo longo e aloirado na esplanada praticamente vazia. Não estava frio, mas chuviscava. O toldo que protegia a meia dúzia de pequenas mesas espalhadas pelo local transmitia-lhe uma sensação de conforto, proteção. Os olhos verdes de Cris estavam pregados na mesa do fundo, a única ocupada para além da sua. Um casal parecia esgrimir argumentos num tom que tinha vindo a aumentar nos últimos minutos. «Também começou assim comigo!», pensou. Olhou para o telemóvel pousado em cima da mesa. Não tocava, não dava sinal de mensagens recebidas, o visor continuava escuro. Ainda assim, menos do que o negrume que sentia dentro de si. Esse sim, não se transformaria em luz ao toque de uma tecla. Se a vida fosse gerida por um smartphone é que era! Haveria de certeza uma aplicação para tudo: Para sorrir quando estivesse triste, para descobrir o segredo da felicidade eterna…talvez até para escolher o homem perfeito! Sorriu com as parvoíces que a mente imaginava. Os momentos maus têm por vezes estas variantes estranhas…que aproximam a tragédia da comédia!

– Vai desejar mais alguma coisa?

Cris saltou da cadeira. O empregado deu um passo atrás, também ele apanhado de surpresa.

-Desculpe senhora, não a queria assustar! – disse, atrapalhado.

Ficou vermelha de vergonha. Mas lá conseguiu sorrir e explicar que estava demasiado embrenhada nos seus pensamentos. Devolveu as desculpas, agradeceu a atenção, recuperou a compostura e pediu um café. «Cheio, porque para vazia já lhe chegava a vida». Não, não lhe disse isso…mas apetecia-lhe. «Traga-me uma vida feliz, se faz favor!», pensou.

Tudo por causa de um homem, Cris! Acorda! Ninguém merece isto. Os neurónios reclamavam, mas o corpo não obedecia. Sentia um frio na barriga, uma fraqueza que não conseguia explicar. Tinha dado cabo de tudo, ou tudo tinha dado cabo dela!

O som de mensagem recebida interrompeu o raciocínio de Cris. O visor do telemóvel iluminou-se e foi então que leu a frase que viria a mudar tudo.

—-

Tens trinta minutos para impedir que o casal à tua frente se separe! – Podia ler-se no visor.

Ficou paralisada. De medo. De surpresa. Que mensagem era aquela?

Engoliu em seco e começou a tossir. Era uma reação habitual quando ficava nervosa. Olhou em volta. Estaria alguém a observá-la? a meter-se com ela? A mensagem vinha de um número que não conhecia. Ao fim de um minuto de estupefação que pareceu durar uma eternidade, ligou para o contacto associado à mensagem. O telefone tocou do outro lado, mas ninguém atendeu e não havia sequer voice mail. Desligou e encostou-se na cadeira aterrorizada. Sentia-se ao mesmo tempo derrotada e tinha o coração aos pulos. O que fazer? Resolveu responder.

Que brincadeira é esta? Quem é você?

A resposta foi rápida. – Quem sou não é importante agora. O importante é que faças o que te estou a dizer! As consequências de não o fazeres serão bem mais devastadoras do que a tua situação atual. 29 minutos!

Agora estava mesmo assustada! Queria fugir a correr dali. Mas o que poderia acontecer? Estaria a ser vítima de uma brincadeira ou a ser vigiada por algum psicopata?

– O que acontece se não fizer o que me pede?  – perguntou.

– Não vais querer saber, Cristina. – seguido de um smile. Era sádico, ainda por cima!

Pânico. Precisava de alguém para a ajudar a perceber o que se estava a passar, alguém que a aconselhasse. Mas estava sozinha. Filipe tinha desistido dela, os pais já a tinham deixado há alguns anos reclamados pela morte, e os dois filhos, Joana e Gonçalo, estavam ainda na escola e eram demasiado pequenos para puderem compreender o que era realmente a vida, quanto mais ajudá-la numa situação tão estranha como esta. E amigos? Pouco tempo tinha para eles de tanto trabalhar na loja de roupa de família da qual tinha herdado a gerencia.

Contemplou o casal com mais atenção. Pareciam estar a ter a discussão da vida deles. Via-os de perfil, sentados, um em frente ao outro. O homem era atraente com a barba por fazer, daquelas medidas com regra e esquadro, tinha uma face quadrada, cabelo grisalho, devia andar nos quarenta anos e vestia fato e gravata. A mulher teria a idade de Cris, uns 36, cabelo ondulado e longo. Ruiva, de tez morena e olhos negros, bem grandes, agora molhados… pela tristeza, imaginou. Não conseguia perceber se era alta ou baixa, mas tinha pernas bem definidas que não parecia querer esconder a julgar pela saia curta que usava e via-se logo que não passaria despercebida em lado nenhum. Tinha uma beleza exótica, mas natural, sem enfeites ou maquilhagens exageradas. Ambos estavam nitidamente desiludidos um com o outro, percebia-se um misto de raiva e tristeza. Havia momentos mais quentes, logo seguidos de silêncios constrangedores. Aquela relação estava perto do fim. Cris sabia disso, talvez bem demais!

Podia levantar-se, pagar a conta e fugir dali! Ou ficar sentada e continuar a pensar na vida! Mas agora havia a terceira hipótese. Por mais estranha ou assustadora que fosse começava a fazer sentido. E se tentasse ajudá-los?

O telefone voltou a vibrar.

– Faz o que estás a pensar fazer! Se te levantares e fugires, vais arrepender-te para sempre! 28 minutos.

Deus! Mas que raio era aquilo? Este devia ser o momento mais estranho e assustador da sua vida. Estava certamente a ser observada. Tudo lhe passou pela cabeça. Alguma mente retorcida, a divertir-se a manipular uma pessoa fragilizada. Mas o que significaria aquela ameaça? Alguém lhe faria mal? Faria mal aos seus filhos? Não queria pensar nisso, ainda mais que algo pudesse acontecer aos filhos! A razão da sua vida! Largou o ar que estava inadvertidamente a conter na garganta e tremeu, de olhos fechados. Ganhou coragem. Levantou-se e lentamente dirigiu-se à mesa do casal que voltara a esconder-se num momento de silêncio.

-Boa tarde. Sou a Cristina. Importam-se que lhes conte uma história? – Não acreditava que ia mesmo fazer aquilo!

O sino da igreja deu três badaladas. Tinha saído da casa na aldeia depois de um almoço faustoso, como só fora da cidade era possível experimentar. Tudo lhe sabia melhor quando passava férias em Limoel, uma pequena aldeia no interior nortenho que nunca ninguém parecia conhecer. A animação à mesa, as brincadeiras com o irmão mais velho e os pais, o calor da lareira acesa, o cheiro de ar puro quando passeava pelo largo, junto ao coreto, eram momentos impagáveis. A visita à mercearia do sr. António que ainda usava o lápis na orelha, deliciosa. Até o mero “olá” e “bom dia” das pessoas que a conheciam desde que nascera, embora só aqui viesse dois meses por ano nas férias das escola. A simplicidade das pessoas em contraste com quem tinha de conviver diariamente na cidade. Cris sorria a toda a hora, com aquele sorriso que a todos parecia iluminar quando visitava Limoel. Andava feliz com a vida, feliz com ela! A visita à aldeia era o ponto alto do ano!

Encontrou Rosa quando regressava da mercearia, depois de fazer um recado à mãe para a festa de logo à tarde.

-Parabéns, Cris!

A voz era inconfundível! Rosa era, também ela, uma passageira anual desta viagem ao paraíso! Cris Sorriu. -obrigado Rosa. 17 aninhos, só falta um para os 18!! Tal como tu! – Mostrou os dentes com uma animação que fazia lembrar um miúdo de cinco anos a quem acabam de oferecer um saco de gomas.

Rosa era também ela atraente, mas de uma forma especial. Ligeiramente encorpada e de bochechas grandes, não se dava muito por ela de imediato, mas rapidamente se descobria na sua face uma beleza escondida. Estava acompanhada do irmão. Já o tinha visto uma ou duas vezes, mas de relance. Sabia que era mais velho que elas dois anos. Mas nunca tinham falado.

-Temos festa hoje? – Rosa franziu a testa, semicerrou os olhos e acompanhou com um sorriso rasgado como apenas quisesse confirmar algo que já sabia.

– Sim, e estás convidada, claro! Aparece lá em casa às cinco para um lanche-ajantarado. E o teu irmão também, claro!

Filipe riu e agradeceu. Tinha uma voz forte, determinada, grossa mas ao mesmo tempo delicada.

– Filipe, apresento-te a Cris!  Só nos vemos aqui no verão. Ela vive em Faro.

Os lábios dele colaram-se-lhe na face com firmeza e demoraram a largar…ou assim lhe pareceu. Devolveu o gesto de igual forma, vá-se lá saber porquê. Cheirava a um perfume maravilhoso que até então desconhecia, e que nunca mais esqueceu! Engraçado como até as fragrâncias ficam na memória, mesmo quando já não estão presentes! Olharam-se nos olhos fixamente. Os dele eram verdes como os seus, menos claros….mas mais profundos e enigmáticos.  Não mais os esqueceria a partir desse dia.

Filipe sentiu uma espécie de desfalecimento interno. Aquele sorriso, aquele aroma, aquela criancice encantadora! Aquela Cris! Não o reconheceu naquele instante, mas estava apaixonado…perdidamente apaixonado. O amor à primeira vista existe! Podemos não o reconhecer no momento. Mas o nosso corpo, alma e coração é impossível de enganar. É mais forte do que nós. Mas naquele momento, tudo o que conseguiu dizer a si próprio foi que aquela era uma miúda a que nunca poderia ambicionar. Era linda, daquelas raparigas que podiam ser capa de qualquer revista, com um cabelo comprido que lhe dava pelos seios, que não deixou de imaginar por entre o decote pouco revelador . Não era alta, como ele. Deviam ser da mesma altura, mas Cris usava uns sapatos que a presenteavam com uns centímetros a mais. Ele devia ser o último rapaz no mundo para quem ela olharia com outros olhos.

Ela olhava para ele com outros olhos, sim! Os olhos de uma miúda conquistada! Não era o rapaz que habitualmente a atraia. Era magro, tinha um nariz grande, olhos também grandes e ligeiramente escondidos, cabelo curto, aloirado e encaracolado. Nenhuma razão imediatamente aparente para a encantar, mas tudo o que tinha, por alguma razão estranha, parecia-lhe perfeito.

Voltaram a encontrar-se à tarde, na sua festa de anos. Familiares, amigos, vizinhos, todos apareceram para lhe dar os parabéns. Na aldeia, a porta estava sempre aberta e ninguém dizia não a uma festinha. Bom vinho, bola de carne, leitão, muitos doces. A vida era boa! E para Cris, melhor no dia de hoje em particular, porque o Filipe estava lá! Conversaram, riram, alimentaram-se com a visão um do outro. Foi um dia perfeito. Ele era divertido, estava sempre a rir e dizer parvoíces. Ela adorava rir-se das parvoíces dele. Que mais havia a dizer? Estava fascinada e ele também. Pareciam parvos, e é tão bom ser parvo!

Nos dias seguintes Cris aproveitou todas as oportunidades para estar com Rosa. Mais do que fazia habitualmente nas férias grandes. Cris sentia-se um pouco egoísta, mas Rosa percebia. Ela estava apaixonada pelo irmão. E ele tinha ficado encantado com ela. Ambos eram especiais e mereciam-se um ao outro. Rosa sabia que Filipe era demasiado tímido nestas questões do coração para tomar iniciativas e resolveu dar uma ajuda.

Poucos dias depois, Filipe viu-se sentado à mesa da cozinha da casa dos pais, uma pequena vivenda a 300 metros da residência maior de Cris e com vista uma para a outra. Ao seu lado estavam os primos João e Carla, parceiros de todos os momentos em Lisboa e que o tinham acompanhado nestas férias em Limoel. Cris estava sentada, pensativa. Os olhos dos dois cruzavam-se a toda a hora, como mísseis apontados ao alvo. Rosa estava em pé. Conversavam sobre o último filme que tinham ido ver ao cinema, um filme de ação com Arnold Sharzenneger, o Exterminador implacável! Rosa chamou os primos para a ajudar a descobrir um brinco que lhe tinha desaparecido no andar de cima. Uma mentira das boas na qual ninguém acreditou, mas que todos aceitaram de bom grado, representando um papel digno de prémio de representação. Retiraram-se do palco para deixarem brilhar os protagonistas.

Viram-se sozinhos, no silêncio mais estranho que já tinham experimentado. Um silêncio quase assustador, porque ambos sabiam, sem o saber, que as próximas palavras seriam determinantes para o resto das suas vidas. Os segundos passaram e voltaram a olhar-se nos olhos. Estavam separados por centímetros. Ele sorriu, com aqueles lábios que Cris já só queria sentir nos seus. Ela baixou os olhos, atrapalhada. Ele sentia um arrepio de medo. Queria dizer-lhe tudo o que estava a sentir, mas qual seria a reação dela? Como seria a vida dele a partir dali se ela não correspondesse. Conseguiria suportar se aquela química que julgava existir entre os dois, fosse apenas um sonho impossível? Mas ficar calado e deixar passar este momento podia ser o fim. E finalmente as palavras saíram.

– Cris…

– Sim, Filipe!

– Sabes o que estou a sentir?

Tremia por todo o lado. Era impossível que ela não percebesse.

– O que estás a sentir?

– Que…

Nada saía…parecia parvo! Idiota! Diz tudo de uma vez, cobarde de merda!!!

– Que…

Ela não o deixou terminar…deu-lhe a mão e apertou-a com força.

Ele aproximou-se dela e, pela primeira vez na vida, percebeu o que era amar alguém. A explosão de emoções foi única. Não existia Filipe, nem Cris, nem Limoel, nem o mundo. Existia aquele momento, o momento dos momentos, o sonho do qual ninguém quer acordar. O beijo. Sim, aquele beijo que fica para toda uma vida.

Acordou das recordações doces do passado.

À sua frente, Cris tinha duas faces paralisadas. Ambas de boca semiaberta e olhos esbugalhados…pareciam salivar. Uma imagem digna de qualquer boa comédia!

O casal estivera estupefacto a ouvi-la durante cinco minutos, que a Cris tinham parecido uma eternidade. Voltara atrás no tempo, ao melhor momento da sua vida. Contara-lhes o que já nem ela própria julgava recordar. Evitava lembrar-se dos melhores momentos da juventude, aqueles que nunca voltam.

– E depois? O que aconteceu? – a mulher quebrou o silencio.

Cris sorriu. Estava a saber-lhe bem reviver aqueles momentos e ter alguém a quem os contar. Mas o pior estava para vir.

Aqueles dois meses foram de sonho! Beijos atrás de beijos, muito amasso…foram mais longe por diversas vezes, ora na casa dela, ora na dele. Mas nunca foram até ao fim. Ele queria, ela também…mas Cris era ainda muito inocente, achava que não era a altura certa e apesar do desejo ser quase insuportável, acabava sempre por se retrair e ele por respeitar. Mas porque raio tinha ele de ser tão respeitador? Pensava.

Ele ia para casa à noite a pensar nela…ela a pensar nele. E mesmo quando não podiam estar juntos, porque os pais a tratavam como a princesa que nenhum rapaz podia tocar, encontravam formas de estar um com o outro, mesmo que fosse apenas através do olhar. Lembrava-se de estar no alpendre de casa a olhar para a janela da casa dele. E ele lá estava de olhos fixos nela. Uma espécie de namoro à distância…de 300 metros. E estavam assim por tempos intermináveis. Só gestos e olhares. Como o amor pode ser puro!

Então acabou. Cris regressou ao Algarve para estudar, mas pior do que isso, Filipe, com 20 anos, conseguiu trabalho em Londres, como repórter de um jornal em português. Era a carreira que escolhera, tinha de aproveitar a ocasião e nestas alturas achamos todos que o mundo é nosso e nada vai mudar. Filipe partiu jurando-lhe amor para sempre e ela fez a mesma promessa. Falavam por telefone uma vez por semana e escreviam-se regularmente. Ambos mantiveram a palavra e a fidelidade. Um ano depois, ele voltou de férias e nada tinha mudado. A loucura um pelo outro era a mesma, sem tirar nem pôr. O beijo era o mesmo, avassalador, impossível de ser repetido com mais alguém! Namoraram na areia da praia, em Loulé…sempre com cuidado para evitar que os pais de Cris percebessem tudo o que se passava. Namorar às escondidas era excitante…tudo era mais intenso. Louco.

Ela já tinha 18 anos, ele 21. Ela admirava-o e queria ser como ele: jornalista! Inscreveu-se no curso de comunicação social numa universidade em Lisboa, porque era também lá que o futuro deles acabaria por ser construído. Sonhava.

Engano. Ele voltou a Londres para o que deveria ser o ultimo ano fora do país. Ela continuou por Lisboa. Voltaram as cartas, os telefonemas…a distância. Aos poucos começou a sair com as novas amigas, a conhecer outros rapazes, a sentir a necessidade do beijo, do carinho, de amar perto e não longe. Não precisou de o dizer em voz alta a Filipe. Ele sentiu! E entendeu. Não podia prometer-lhe que voltaria mesmo no fim do ano, estava a dar-se bem em Inglaterra e até já tinha sido promovido a editor. A relação terminou…sem terminar. Um dia quem sabe, pensaram. Ele chorou nessa noite, mas nunca lhe disse. Ela também!

Cris conheceu um rapaz na universidade. Era atlético, giro, não era o Filipe, mas cativou-a.E ela gostava de se sentir viva. Não foi com ele que perdeu a virgindade…aconteceu quando menos esperava, com alguém que nunca amou, numa viagem de férias a Palma de Maiorca. Foi tudo menos aquilo que esperava desse momento. Uma mistura de desconforto com prazer, mas sem paixão. Afinal era aquilo?

Namorou quatro anos com Paulo, o suficiente para perceber que não era o homem da sua vida, nem nunca seria. Voltou ao Algarve quando terminou a universidade porque havia um negócio de família a tratar e ela precisava de conquistar a independência financeira. Terminou o namoro, e voltou a Faro. Nunca mais pensou no jornalismo! Foi no Algarve que conheceu Rubio, um argentino, por quem se apaixonou. Ela adorava dançar, ele dançava como um Deus! A dança consegue transportar-nos para as fantasias mais incríveis, espanta os medos, alimenta a imaginação. Foi paixão quase imediata, não pensou. E de um momento para o outro estava casada, contra a vontade dos pais. Já não queria pensar no Filipe, nem num futuro idílico. A vida era o que era, não podia ser perfeita. Aquele deus, de corpo trabalhado e olhar magnético era a resposta aos seus desejos! Resolveu tudo de uma vez e, de um, passou a dois filhos em apenas dois anos. Rubio não tinha a mesma ideia. Não a amava como Filipe, nunca a poderia amar da mesma forma, nem ela a ele. Não se conheciam um ao outro assim tão bem, apesar de quatro anos de casamento, mas achavam que sim. O resultado final foi um divórcio e duas crianças que ficaram a seu cargo.

Filipe também encontrou outra pessoa. E também se apaixonou. Como Cris largou o passado, agarraou o presente e viveu momentos de felicidade. Casou e teve uma filha já depois de regressar a Portugal para trabalhar na televisão.  Anos depois, também o casamento terminou. Não tinham sido feitos um para o outro, pensou! Depois dos primeiros anos de paixão, tinha restado o carinho, a cumplicidade, a companhia….mas não chegava. Nunca chega!

Filipe e Cris nunca mais se tinham visto ou falado. 20 anos tinham passado desde o momento em que se tinham descoberto um ao outro. Até que Cris, que ia sabendo ocasionalmente de Filipe por intermédio da sua grande amiga, Rosa, ganhou coragem para lhe ligar.

O homem interrompeu-a!

– É uma história fantástica aquela que nos tem contado!

– Vai ter um final feliz? – Perguntou a mulher, com lágrimas nos olhos, maravilhada pela história de amor que uma completa estranha tinha decidido partilhar com ela e o namorado, no momento mais improvável.

– Bom… – respondeu Cris. E continuou.

Foi com surpresa que Filipe recebeu aquela chamada. Mas bem lá no fundo, sabia que ela nunca o tinha esquecido, como ele a ela. Combinaram encontrar-se. Afinal, agora eram ambos solteiros e a vida continua. Ela viajou do Algarve. Ele esperou-a com o coração aos pulos na estação de comboios do Oriente. Beijaram-se como se fossem dois miúdos, como se o tempo nunca tivesse passado. Mas os anos tinham realmente passado. Nos meses que se seguiram foram namorando à distância. Ele visitava-a de quando em vez em Faro. Ela, por menos vezes, vinha a Lisboa para breves escapadas românticas. Começaram a falar em viver juntos. E se ela viesse para Lisboa? Cris disse que sim e começou a preparar tudo para realizar finalmente o sonho de toda uma vida. Mas depois começaram os receios. Encontrou de repente todas as dificuldades do mundo. Como seria a sua vida com os dois filhos noutra cidade? Sem os pais por perto para ajudar nos apertos? E se ele não fosse já o mesmo homem? E se fosse igual aos outros? Afinal… não são todos iguais? Havia muita raiva interior dentro dela, restos de um passado recente. Ele não tinha culpa, mas Cris já não conseguia pensar na vida dela sem ponderar muitas outras variáveis. De um dia para o outro começou a distanciar-se. Ele não percebia o porquê! Ainda acreditava no amor e uma cabana, ela não! Tinha sido lindo viver essa fantasia quando era miúda, mas hoje…só se fosse louca! Não valia apena arriscar.

– Também pensei muito nisso, sabia? – Interrompeu a mulher à sua frente. – Eu sou a Sara, já agora! Este é o meu namorado, o Jorge. E você é…

– Cristina..Cris! – sorriu.

A mulher continuou.  – Abdicar de algumas coisas por um grande amor mete medo. Mesmo muito medo.

– Mas se não o fizermos, resta-nos o quê? Queixarmo-nos da vida para sempre? Recriminarmo-nos pelo que não fizemos? – Acrescentou Jorge, com ar de enfado. – Ou se arrisca ou nunca se vai petiscar! É como penso. E o que passo a vida a dizer à Sara. Mas ela não quer ouvir.

Sara fez um ar de enfado forçado. Mas começava a achar que Jorge talvez tivesse razão. Centrou os olhos de novo em Cris e perguntou: – Mas o que aconteceu, afinal? Ficaram juntos? Mudou de ideias, Cris?

– Não! Na realidade, não! O problema da vida é que raramente segue os mesmos caminhos de um conto romântico com final feliz! Eu e Filipe fomos mantendo uma espécie de relação, mas eu nunca quis dar passos em frente e ele, pelo contrário, queria mais. Sou teimosa e orgulhosa, mantive a minha ideia. Sou de ideias fixas. Acho que desde sempre. E nunca pensei verdadeiramente que ele pudesse realmente desistir, acho eu! O Filipe é uma pessoa determinada, nunca deixou de tentar. Até ao dia em que pura e simplesmente deixou de enviar mensagens, de ligar ou atender o telefone. Já lá vão 8 meses…

Cris fechou os olhos por segundos. Falar sobre este assunto em voz alta de alguma forma a tornara espetadora dela própria. Tudo o que dissera a estes estranhos, era como se estivesse a dize-lo a ela própria. Admitira mais nos últimos minutos do que alguma vez reconhecera nas discussões com Filipe. E ele tinha sempre tido tanta paciência com ela!

Olhou para o casal ao seu lado. Tinham agora as mãos dadas. Dedos entrelaçados com firmeza. Uma imagem tão distinta de há pouco. Porquê?

O telefone vibrou! – Dois minutos.

Perguntou: – A vossa relação está a terminar?

Fez-se silencio. Sara desviou o olhar de Cristina e dirigiu-o a Jorge que a fitava paralisado, como se esperasse uma resposta.

– Não! – Disse Sara. Sorriu pela primeira vez, de lábios bem abertos e uma lágrima no canto do olho. – Na realidade, acho que agora sim, vai começar!

Cris sentiu o clima desanuviar. Um raio de sol iluminou a esplanada e deixou de chover. Incrível como tudo coincidiu naquele momento, para o tornar quase perfeito. Cris suspirou de felicidade…ela tinha mudado o mundo de alguém. Uma parte de si sentia-se realizada, com esperança na vida, no amor, no futuro!

Estremeceu na cadeira. Estava subitamente sentada na mesma mesa onde começara a tarde.

O casal continuava lá…enamorado. De mãos dadas e muitos sorrisos. Mas como podia não se lembrar dos últimos segundos? Num momento estava sentada junto deles e, repentinamente, como se tivesse sido teleportada, voltara à casa de partida! Estaria a ficar louca?

O casal levantou-se e, de mão dada, dirigiu-se para o caminho que levava à saída. Passou junto de Cris sem nada dizer, mas ela sentiu-se na obrigação de os felicitar.

– Desejo-vos tudo de bom e que se mantenham sempre assim, juntos e apaixonados!

O casal parou. Surpreendido.

-Como? Conhecemo-nos ? – Disse Sara! – com um sorriso desconfiado.

Cris ficou em choque! Mas como seria possível? Aqueles dois não a reconheciam, não pareciam recordar-se de nada. Era como se a última meia hora não tivesse sequer acontecido.

– … hum…peço desculpa, devo tê-los confundido com alguém! – acabou por dizer, quando finalmente as palavras lhe saíram da garganta.

O casal trocou um breve olhar intrigado, mas rapidamente retomou o caminho. Tinham ambos coisas bem mais importantes em que pensar.

Cris é que não sabia o que pensar. Estava louca, só podia! E de repente, o telemóvel voltou a vibrar.

– E agora, Cris? Sabes o que fazer da tua vida?

A mensagem parecia descabida! Mas pela primeira vez durante a última meia hora percebeu que não era!

Respondeu em voz alta, sem escrever: – Sim, sei o que fazer!

Depois suspirou, olhou para as teclas do telemóvel e marcou o número de Filipe. O número da pessoa que nunca devia ter afastado da sua vida. Em questão de segundos, todos os momentos vividos com ele passaram-lhe pela mente, como um videoclip romântico ilustrado por uma música lamechas, impossível de resistir sem deixar cair uma lágrima.

A primeira vez que o viu. O primeiro beijo. A primeira discussão e a forma avassaladora como fizeram as pazes. As primeiras brincadeiras intimas no quarto fechado à chave da casa dos pais. A música de Eric Clapton, Wonderfull Tonight, que ele lhe cantara uma noite e que nunca mais conseguiu esquecer…e parece surgir do nada, nos momentos mais improváveis. A primeira despedida. O primeiro reencontro…e o último, 20 anos depois. A primeira vez que fizeram amor. A forma como o viu afastar-se, porque estava tão crente de que não podia voltar a arriscar numa relação. A desculpa dos filhos, como se a vida de uma mulher se pudesse resumir a procriar. As lágrimas derramadas sozinha na cama, consequência da decisão de abdicar do único homem que a tinha feito sentir-se única, linda, fascinante.

E por fim…

O vislumbre do que o futuro lhe reservava. O beijo do novo e definitivo reencontro. O recomeço. O carinho omnipresente. As palavras verdadeiras de apoio que nos aquecem quando sentimos o frio da tristeza. A opinião sincera de quem simplesmente ama…sem nada mais querer em troca. O risco que todos nós devemos tomar quando parece certo e não errado! O sorriso que só ele sabia modelar na face dela! Como este que Cris tinha agora vestido ao ouvir a voz de Filipe do outro lado da linha, a dizer-lhe que ainda ali estava para ela! Que nunca deixou de estar!

E pensar…o que 30 minutos podem fazer quando verdadeiramente nos predispomos a aproveitá-los!