Brincava com o cabelo longo e aloirado na esplanada praticamente vazia. Não estava frio, mas chuviscava. O toldo que protegia a meia dúzia de pequenas mesas espalhadas pelo local transmitia-lhe uma sensação de conforto, proteção. Os olhos verdes de Cris estavam pregados na mesa do fundo, a única ocupada para além da sua. Um casal parecia esgrimir argumentos num tom que tinha vindo a aumentar nos últimos minutos. «Também começou assim comigo!», pensou. Olhou para o telemóvel pousado em cima da mesa. Não tocava, não dava sinal de mensagens recebidas, o visor continuava escuro. Ainda assim, menos do que o negrume que sentia dentro de si. Esse sim, não se transformaria em luz ao toque de uma tecla. Se a vida fosse gerida por um smartphone é que era! Haveria de certeza uma aplicação para tudo: Para sorrir quando estivesse triste, para descobrir o segredo da felicidade eterna…talvez até para escolher o homem perfeito! Sorriu com as parvoíces que a mente imaginava. Os momentos maus têm por vezes estas variantes estranhas…que aproximam a tragédia da comédia!
– Vai desejar mais alguma coisa?
Cris saltou da cadeira. O empregado deu um passo atrás, também ele apanhado de surpresa.
-Desculpe senhora, não a queria assustar! – disse, atrapalhado.
Ficou vermelha de vergonha. Mas lá conseguiu sorrir e explicar que estava demasiado embrenhada nos seus pensamentos. Devolveu as desculpas, agradeceu a atenção, recuperou a compostura e pediu um café. «Cheio, porque para vazia já lhe chegava a vida». Não, não lhe disse isso…mas apetecia-lhe. «Traga-me uma vida feliz, se faz favor!», pensou.
Tudo por causa de um homem, Cris! Acorda! Ninguém merece isto. Os neurónios reclamavam, mas o corpo não obedecia. Sentia um frio na barriga, uma fraqueza que não conseguia explicar. Tinha dado cabo de tudo, ou tudo tinha dado cabo dela!
O som de mensagem recebida interrompeu o raciocínio de Cris. O visor do telemóvel iluminou-se e foi então que leu a frase que viria a mudar tudo.
—-
Tens trinta minutos para impedir que o casal à tua frente se separe! – Podia ler-se no visor.
Ficou paralisada. De medo. De surpresa. Que mensagem era aquela?
Engoliu em seco e começou a tossir. Era uma reação habitual quando ficava nervosa. Olhou em volta. Estaria alguém a observá-la? a meter-se com ela? A mensagem vinha de um número que não conhecia. Ao fim de um minuto de estupefação que pareceu durar uma eternidade, ligou para o contacto associado à mensagem. O telefone tocou do outro lado, mas ninguém atendeu e não havia sequer voice mail. Desligou e encostou-se na cadeira aterrorizada. Sentia-se ao mesmo tempo derrotada e tinha o coração aos pulos. O que fazer? Resolveu responder.
Que brincadeira é esta? Quem é você?
A resposta foi rápida. – Quem sou não é importante agora. O importante é que faças o que te estou a dizer! As consequências de não o fazeres serão bem mais devastadoras do que a tua situação atual. 29 minutos!
Agora estava mesmo assustada! Queria fugir a correr dali. Mas o que poderia acontecer? Estaria a ser vítima de uma brincadeira ou a ser vigiada por algum psicopata?
– O que acontece se não fizer o que me pede? – perguntou.
– Não vais querer saber, Cristina. – seguido de um smile. Era sádico, ainda por cima!
Pânico. Precisava de alguém para a ajudar a perceber o que se estava a passar, alguém que a aconselhasse. Mas estava sozinha. Filipe tinha desistido dela, os pais já a tinham deixado há alguns anos reclamados pela morte, e os dois filhos, Joana e Gonçalo, estavam ainda na escola e eram demasiado pequenos para puderem compreender o que era realmente a vida, quanto mais ajudá-la numa situação tão estranha como esta. E amigos? Pouco tempo tinha para eles de tanto trabalhar na loja de roupa de família da qual tinha herdado a gerencia.
Contemplou o casal com mais atenção. Pareciam estar a ter a discussão da vida deles. Via-os de perfil, sentados, um em frente ao outro. O homem era atraente com a barba por fazer, daquelas medidas com regra e esquadro, tinha uma face quadrada, cabelo grisalho, devia andar nos quarenta anos e vestia fato e gravata. A mulher teria a idade de Cris, uns 36, cabelo ondulado e longo. Ruiva, de tez morena e olhos negros, bem grandes, agora molhados… pela tristeza, imaginou. Não conseguia perceber se era alta ou baixa, mas tinha pernas bem definidas que não parecia querer esconder a julgar pela saia curta que usava e via-se logo que não passaria despercebida em lado nenhum. Tinha uma beleza exótica, mas natural, sem enfeites ou maquilhagens exageradas. Ambos estavam nitidamente desiludidos um com o outro, percebia-se um misto de raiva e tristeza. Havia momentos mais quentes, logo seguidos de silêncios constrangedores. Aquela relação estava perto do fim. Cris sabia disso, talvez bem demais!
Podia levantar-se, pagar a conta e fugir dali! Ou ficar sentada e continuar a pensar na vida! Mas agora havia a terceira hipótese. Por mais estranha ou assustadora que fosse começava a fazer sentido. E se tentasse ajudá-los?
O telefone voltou a vibrar.
– Faz o que estás a pensar fazer! Se te levantares e fugires, vais arrepender-te para sempre! 28 minutos.
Deus! Mas que raio era aquilo? Este devia ser o momento mais estranho e assustador da sua vida. Estava certamente a ser observada. Tudo lhe passou pela cabeça. Alguma mente retorcida, a divertir-se a manipular uma pessoa fragilizada. Mas o que significaria aquela ameaça? Alguém lhe faria mal? Faria mal aos seus filhos? Não queria pensar nisso, ainda mais que algo pudesse acontecer aos filhos! A razão da sua vida! Largou o ar que estava inadvertidamente a conter na garganta e tremeu, de olhos fechados. Ganhou coragem. Levantou-se e lentamente dirigiu-se à mesa do casal que voltara a esconder-se num momento de silêncio.
-Boa tarde. Sou a Cristina. Importam-se que lhes conte uma história? – Não acreditava que ia mesmo fazer aquilo!
O sino da igreja deu três badaladas. Tinha saído da casa na aldeia depois de um almoço faustoso, como só fora da cidade era possível experimentar. Tudo lhe sabia melhor quando passava férias em Limoel, uma pequena aldeia no interior nortenho que nunca ninguém parecia conhecer. A animação à mesa, as brincadeiras com o irmão mais velho e os pais, o calor da lareira acesa, o cheiro de ar puro quando passeava pelo largo, junto ao coreto, eram momentos impagáveis. A visita à mercearia do sr. António que ainda usava o lápis na orelha, deliciosa. Até o mero “olá” e “bom dia” das pessoas que a conheciam desde que nascera, embora só aqui viesse dois meses por ano nas férias das escola. A simplicidade das pessoas em contraste com quem tinha de conviver diariamente na cidade. Cris sorria a toda a hora, com aquele sorriso que a todos parecia iluminar quando visitava Limoel. Andava feliz com a vida, feliz com ela! A visita à aldeia era o ponto alto do ano!
Encontrou Rosa quando regressava da mercearia, depois de fazer um recado à mãe para a festa de logo à tarde.
-Parabéns, Cris!
A voz era inconfundível! Rosa era, também ela, uma passageira anual desta viagem ao paraíso! Cris Sorriu. -obrigado Rosa. 17 aninhos, só falta um para os 18!! Tal como tu! – Mostrou os dentes com uma animação que fazia lembrar um miúdo de cinco anos a quem acabam de oferecer um saco de gomas.
Rosa era também ela atraente, mas de uma forma especial. Ligeiramente encorpada e de bochechas grandes, não se dava muito por ela de imediato, mas rapidamente se descobria na sua face uma beleza escondida. Estava acompanhada do irmão. Já o tinha visto uma ou duas vezes, mas de relance. Sabia que era mais velho que elas dois anos. Mas nunca tinham falado.
-Temos festa hoje? – Rosa franziu a testa, semicerrou os olhos e acompanhou com um sorriso rasgado como apenas quisesse confirmar algo que já sabia.
– Sim, e estás convidada, claro! Aparece lá em casa às cinco para um lanche-ajantarado. E o teu irmão também, claro!
Filipe riu e agradeceu. Tinha uma voz forte, determinada, grossa mas ao mesmo tempo delicada.
– Filipe, apresento-te a Cris! Só nos vemos aqui no verão. Ela vive em Faro.
Os lábios dele colaram-se-lhe na face com firmeza e demoraram a largar…ou assim lhe pareceu. Devolveu o gesto de igual forma, vá-se lá saber porquê. Cheirava a um perfume maravilhoso que até então desconhecia, e que nunca mais esqueceu! Engraçado como até as fragrâncias ficam na memória, mesmo quando já não estão presentes! Olharam-se nos olhos fixamente. Os dele eram verdes como os seus, menos claros….mas mais profundos e enigmáticos. Não mais os esqueceria a partir desse dia.
Filipe sentiu uma espécie de desfalecimento interno. Aquele sorriso, aquele aroma, aquela criancice encantadora! Aquela Cris! Não o reconheceu naquele instante, mas estava apaixonado…perdidamente apaixonado. O amor à primeira vista existe! Podemos não o reconhecer no momento. Mas o nosso corpo, alma e coração é impossível de enganar. É mais forte do que nós. Mas naquele momento, tudo o que conseguiu dizer a si próprio foi que aquela era uma miúda a que nunca poderia ambicionar. Era linda, daquelas raparigas que podiam ser capa de qualquer revista, com um cabelo comprido que lhe dava pelos seios, que não deixou de imaginar por entre o decote pouco revelador . Não era alta, como ele. Deviam ser da mesma altura, mas Cris usava uns sapatos que a presenteavam com uns centímetros a mais. Ele devia ser o último rapaz no mundo para quem ela olharia com outros olhos.
Ela olhava para ele com outros olhos, sim! Os olhos de uma miúda conquistada! Não era o rapaz que habitualmente a atraia. Era magro, tinha um nariz grande, olhos também grandes e ligeiramente escondidos, cabelo curto, aloirado e encaracolado. Nenhuma razão imediatamente aparente para a encantar, mas tudo o que tinha, por alguma razão estranha, parecia-lhe perfeito.
Voltaram a encontrar-se à tarde, na sua festa de anos. Familiares, amigos, vizinhos, todos apareceram para lhe dar os parabéns. Na aldeia, a porta estava sempre aberta e ninguém dizia não a uma festinha. Bom vinho, bola de carne, leitão, muitos doces. A vida era boa! E para Cris, melhor no dia de hoje em particular, porque o Filipe estava lá! Conversaram, riram, alimentaram-se com a visão um do outro. Foi um dia perfeito. Ele era divertido, estava sempre a rir e dizer parvoíces. Ela adorava rir-se das parvoíces dele. Que mais havia a dizer? Estava fascinada e ele também. Pareciam parvos, e é tão bom ser parvo!
Nos dias seguintes Cris aproveitou todas as oportunidades para estar com Rosa. Mais do que fazia habitualmente nas férias grandes. Cris sentia-se um pouco egoísta, mas Rosa percebia. Ela estava apaixonada pelo irmão. E ele tinha ficado encantado com ela. Ambos eram especiais e mereciam-se um ao outro. Rosa sabia que Filipe era demasiado tímido nestas questões do coração para tomar iniciativas e resolveu dar uma ajuda.
Poucos dias depois, Filipe viu-se sentado à mesa da cozinha da casa dos pais, uma pequena vivenda a 300 metros da residência maior de Cris e com vista uma para a outra. Ao seu lado estavam os primos João e Carla, parceiros de todos os momentos em Lisboa e que o tinham acompanhado nestas férias em Limoel. Cris estava sentada, pensativa. Os olhos dos dois cruzavam-se a toda a hora, como mísseis apontados ao alvo. Rosa estava em pé. Conversavam sobre o último filme que tinham ido ver ao cinema, um filme de ação com Arnold Sharzenneger, o Exterminador implacável! Rosa chamou os primos para a ajudar a descobrir um brinco que lhe tinha desaparecido no andar de cima. Uma mentira das boas na qual ninguém acreditou, mas que todos aceitaram de bom grado, representando um papel digno de prémio de representação. Retiraram-se do palco para deixarem brilhar os protagonistas.
Viram-se sozinhos, no silêncio mais estranho que já tinham experimentado. Um silêncio quase assustador, porque ambos sabiam, sem o saber, que as próximas palavras seriam determinantes para o resto das suas vidas. Os segundos passaram e voltaram a olhar-se nos olhos. Estavam separados por centímetros. Ele sorriu, com aqueles lábios que Cris já só queria sentir nos seus. Ela baixou os olhos, atrapalhada. Ele sentia um arrepio de medo. Queria dizer-lhe tudo o que estava a sentir, mas qual seria a reação dela? Como seria a vida dele a partir dali se ela não correspondesse. Conseguiria suportar se aquela química que julgava existir entre os dois, fosse apenas um sonho impossível? Mas ficar calado e deixar passar este momento podia ser o fim. E finalmente as palavras saíram.
– Cris…
– Sim, Filipe!
– Sabes o que estou a sentir?
Tremia por todo o lado. Era impossível que ela não percebesse.
– O que estás a sentir?
– Que…
Nada saía…parecia parvo! Idiota! Diz tudo de uma vez, cobarde de merda!!!
– Que…
Ela não o deixou terminar…deu-lhe a mão e apertou-a com força.
Ele aproximou-se dela e, pela primeira vez na vida, percebeu o que era amar alguém. A explosão de emoções foi única. Não existia Filipe, nem Cris, nem Limoel, nem o mundo. Existia aquele momento, o momento dos momentos, o sonho do qual ninguém quer acordar. O beijo. Sim, aquele beijo que fica para toda uma vida.
Acordou das recordações doces do passado.
À sua frente, Cris tinha duas faces paralisadas. Ambas de boca semiaberta e olhos esbugalhados…pareciam salivar. Uma imagem digna de qualquer boa comédia!
O casal estivera estupefacto a ouvi-la durante cinco minutos, que a Cris tinham parecido uma eternidade. Voltara atrás no tempo, ao melhor momento da sua vida. Contara-lhes o que já nem ela própria julgava recordar. Evitava lembrar-se dos melhores momentos da juventude, aqueles que nunca voltam.
– E depois? O que aconteceu? – a mulher quebrou o silencio.
Cris sorriu. Estava a saber-lhe bem reviver aqueles momentos e ter alguém a quem os contar. Mas o pior estava para vir.
Aqueles dois meses foram de sonho! Beijos atrás de beijos, muito amasso…foram mais longe por diversas vezes, ora na casa dela, ora na dele. Mas nunca foram até ao fim. Ele queria, ela também…mas Cris era ainda muito inocente, achava que não era a altura certa e apesar do desejo ser quase insuportável, acabava sempre por se retrair e ele por respeitar. Mas porque raio tinha ele de ser tão respeitador? Pensava.
Ele ia para casa à noite a pensar nela…ela a pensar nele. E mesmo quando não podiam estar juntos, porque os pais a tratavam como a princesa que nenhum rapaz podia tocar, encontravam formas de estar um com o outro, mesmo que fosse apenas através do olhar. Lembrava-se de estar no alpendre de casa a olhar para a janela da casa dele. E ele lá estava de olhos fixos nela. Uma espécie de namoro à distância…de 300 metros. E estavam assim por tempos intermináveis. Só gestos e olhares. Como o amor pode ser puro!
Então acabou. Cris regressou ao Algarve para estudar, mas pior do que isso, Filipe, com 20 anos, conseguiu trabalho em Londres, como repórter de um jornal em português. Era a carreira que escolhera, tinha de aproveitar a ocasião e nestas alturas achamos todos que o mundo é nosso e nada vai mudar. Filipe partiu jurando-lhe amor para sempre e ela fez a mesma promessa. Falavam por telefone uma vez por semana e escreviam-se regularmente. Ambos mantiveram a palavra e a fidelidade. Um ano depois, ele voltou de férias e nada tinha mudado. A loucura um pelo outro era a mesma, sem tirar nem pôr. O beijo era o mesmo, avassalador, impossível de ser repetido com mais alguém! Namoraram na areia da praia, em Loulé…sempre com cuidado para evitar que os pais de Cris percebessem tudo o que se passava. Namorar às escondidas era excitante…tudo era mais intenso. Louco.
Ela já tinha 18 anos, ele 21. Ela admirava-o e queria ser como ele: jornalista! Inscreveu-se no curso de comunicação social numa universidade em Lisboa, porque era também lá que o futuro deles acabaria por ser construído. Sonhava.
Engano. Ele voltou a Londres para o que deveria ser o ultimo ano fora do país. Ela continuou por Lisboa. Voltaram as cartas, os telefonemas…a distância. Aos poucos começou a sair com as novas amigas, a conhecer outros rapazes, a sentir a necessidade do beijo, do carinho, de amar perto e não longe. Não precisou de o dizer em voz alta a Filipe. Ele sentiu! E entendeu. Não podia prometer-lhe que voltaria mesmo no fim do ano, estava a dar-se bem em Inglaterra e até já tinha sido promovido a editor. A relação terminou…sem terminar. Um dia quem sabe, pensaram. Ele chorou nessa noite, mas nunca lhe disse. Ela também!
Cris conheceu um rapaz na universidade. Era atlético, giro, não era o Filipe, mas cativou-a.E ela gostava de se sentir viva. Não foi com ele que perdeu a virgindade…aconteceu quando menos esperava, com alguém que nunca amou, numa viagem de férias a Palma de Maiorca. Foi tudo menos aquilo que esperava desse momento. Uma mistura de desconforto com prazer, mas sem paixão. Afinal era aquilo?
Namorou quatro anos com Paulo, o suficiente para perceber que não era o homem da sua vida, nem nunca seria. Voltou ao Algarve quando terminou a universidade porque havia um negócio de família a tratar e ela precisava de conquistar a independência financeira. Terminou o namoro, e voltou a Faro. Nunca mais pensou no jornalismo! Foi no Algarve que conheceu Rubio, um argentino, por quem se apaixonou. Ela adorava dançar, ele dançava como um Deus! A dança consegue transportar-nos para as fantasias mais incríveis, espanta os medos, alimenta a imaginação. Foi paixão quase imediata, não pensou. E de um momento para o outro estava casada, contra a vontade dos pais. Já não queria pensar no Filipe, nem num futuro idílico. A vida era o que era, não podia ser perfeita. Aquele deus, de corpo trabalhado e olhar magnético era a resposta aos seus desejos! Resolveu tudo de uma vez e, de um, passou a dois filhos em apenas dois anos. Rubio não tinha a mesma ideia. Não a amava como Filipe, nunca a poderia amar da mesma forma, nem ela a ele. Não se conheciam um ao outro assim tão bem, apesar de quatro anos de casamento, mas achavam que sim. O resultado final foi um divórcio e duas crianças que ficaram a seu cargo.
Filipe também encontrou outra pessoa. E também se apaixonou. Como Cris largou o passado, agarraou o presente e viveu momentos de felicidade. Casou e teve uma filha já depois de regressar a Portugal para trabalhar na televisão. Anos depois, também o casamento terminou. Não tinham sido feitos um para o outro, pensou! Depois dos primeiros anos de paixão, tinha restado o carinho, a cumplicidade, a companhia….mas não chegava. Nunca chega!
Filipe e Cris nunca mais se tinham visto ou falado. 20 anos tinham passado desde o momento em que se tinham descoberto um ao outro. Até que Cris, que ia sabendo ocasionalmente de Filipe por intermédio da sua grande amiga, Rosa, ganhou coragem para lhe ligar.
O homem interrompeu-a!
– É uma história fantástica aquela que nos tem contado!
– Vai ter um final feliz? – Perguntou a mulher, com lágrimas nos olhos, maravilhada pela história de amor que uma completa estranha tinha decidido partilhar com ela e o namorado, no momento mais improvável.
– Bom… – respondeu Cris. E continuou.
Foi com surpresa que Filipe recebeu aquela chamada. Mas bem lá no fundo, sabia que ela nunca o tinha esquecido, como ele a ela. Combinaram encontrar-se. Afinal, agora eram ambos solteiros e a vida continua. Ela viajou do Algarve. Ele esperou-a com o coração aos pulos na estação de comboios do Oriente. Beijaram-se como se fossem dois miúdos, como se o tempo nunca tivesse passado. Mas os anos tinham realmente passado. Nos meses que se seguiram foram namorando à distância. Ele visitava-a de quando em vez em Faro. Ela, por menos vezes, vinha a Lisboa para breves escapadas românticas. Começaram a falar em viver juntos. E se ela viesse para Lisboa? Cris disse que sim e começou a preparar tudo para realizar finalmente o sonho de toda uma vida. Mas depois começaram os receios. Encontrou de repente todas as dificuldades do mundo. Como seria a sua vida com os dois filhos noutra cidade? Sem os pais por perto para ajudar nos apertos? E se ele não fosse já o mesmo homem? E se fosse igual aos outros? Afinal… não são todos iguais? Havia muita raiva interior dentro dela, restos de um passado recente. Ele não tinha culpa, mas Cris já não conseguia pensar na vida dela sem ponderar muitas outras variáveis. De um dia para o outro começou a distanciar-se. Ele não percebia o porquê! Ainda acreditava no amor e uma cabana, ela não! Tinha sido lindo viver essa fantasia quando era miúda, mas hoje…só se fosse louca! Não valia apena arriscar.
– Também pensei muito nisso, sabia? – Interrompeu a mulher à sua frente. – Eu sou a Sara, já agora! Este é o meu namorado, o Jorge. E você é…
– Cristina..Cris! – sorriu.
A mulher continuou. – Abdicar de algumas coisas por um grande amor mete medo. Mesmo muito medo.
– Mas se não o fizermos, resta-nos o quê? Queixarmo-nos da vida para sempre? Recriminarmo-nos pelo que não fizemos? – Acrescentou Jorge, com ar de enfado. – Ou se arrisca ou nunca se vai petiscar! É como penso. E o que passo a vida a dizer à Sara. Mas ela não quer ouvir.
Sara fez um ar de enfado forçado. Mas começava a achar que Jorge talvez tivesse razão. Centrou os olhos de novo em Cris e perguntou: – Mas o que aconteceu, afinal? Ficaram juntos? Mudou de ideias, Cris?
– Não! Na realidade, não! O problema da vida é que raramente segue os mesmos caminhos de um conto romântico com final feliz! Eu e Filipe fomos mantendo uma espécie de relação, mas eu nunca quis dar passos em frente e ele, pelo contrário, queria mais. Sou teimosa e orgulhosa, mantive a minha ideia. Sou de ideias fixas. Acho que desde sempre. E nunca pensei verdadeiramente que ele pudesse realmente desistir, acho eu! O Filipe é uma pessoa determinada, nunca deixou de tentar. Até ao dia em que pura e simplesmente deixou de enviar mensagens, de ligar ou atender o telefone. Já lá vão 8 meses…
Cris fechou os olhos por segundos. Falar sobre este assunto em voz alta de alguma forma a tornara espetadora dela própria. Tudo o que dissera a estes estranhos, era como se estivesse a dize-lo a ela própria. Admitira mais nos últimos minutos do que alguma vez reconhecera nas discussões com Filipe. E ele tinha sempre tido tanta paciência com ela!
Olhou para o casal ao seu lado. Tinham agora as mãos dadas. Dedos entrelaçados com firmeza. Uma imagem tão distinta de há pouco. Porquê?
O telefone vibrou! – Dois minutos.
Perguntou: – A vossa relação está a terminar?
Fez-se silencio. Sara desviou o olhar de Cristina e dirigiu-o a Jorge que a fitava paralisado, como se esperasse uma resposta.
– Não! – Disse Sara. Sorriu pela primeira vez, de lábios bem abertos e uma lágrima no canto do olho. – Na realidade, acho que agora sim, vai começar!
Cris sentiu o clima desanuviar. Um raio de sol iluminou a esplanada e deixou de chover. Incrível como tudo coincidiu naquele momento, para o tornar quase perfeito. Cris suspirou de felicidade…ela tinha mudado o mundo de alguém. Uma parte de si sentia-se realizada, com esperança na vida, no amor, no futuro!
Estremeceu na cadeira. Estava subitamente sentada na mesma mesa onde começara a tarde.
O casal continuava lá…enamorado. De mãos dadas e muitos sorrisos. Mas como podia não se lembrar dos últimos segundos? Num momento estava sentada junto deles e, repentinamente, como se tivesse sido teleportada, voltara à casa de partida! Estaria a ficar louca?
O casal levantou-se e, de mão dada, dirigiu-se para o caminho que levava à saída. Passou junto de Cris sem nada dizer, mas ela sentiu-se na obrigação de os felicitar.
– Desejo-vos tudo de bom e que se mantenham sempre assim, juntos e apaixonados!
O casal parou. Surpreendido.
-Como? Conhecemo-nos ? – Disse Sara! – com um sorriso desconfiado.
Cris ficou em choque! Mas como seria possível? Aqueles dois não a reconheciam, não pareciam recordar-se de nada. Era como se a última meia hora não tivesse sequer acontecido.
– … hum…peço desculpa, devo tê-los confundido com alguém! – acabou por dizer, quando finalmente as palavras lhe saíram da garganta.
O casal trocou um breve olhar intrigado, mas rapidamente retomou o caminho. Tinham ambos coisas bem mais importantes em que pensar.
Cris é que não sabia o que pensar. Estava louca, só podia! E de repente, o telemóvel voltou a vibrar.
– E agora, Cris? Sabes o que fazer da tua vida?
A mensagem parecia descabida! Mas pela primeira vez durante a última meia hora percebeu que não era!
Respondeu em voz alta, sem escrever: – Sim, sei o que fazer!
Depois suspirou, olhou para as teclas do telemóvel e marcou o número de Filipe. O número da pessoa que nunca devia ter afastado da sua vida. Em questão de segundos, todos os momentos vividos com ele passaram-lhe pela mente, como um videoclip romântico ilustrado por uma música lamechas, impossível de resistir sem deixar cair uma lágrima.
A primeira vez que o viu. O primeiro beijo. A primeira discussão e a forma avassaladora como fizeram as pazes. As primeiras brincadeiras intimas no quarto fechado à chave da casa dos pais. A música de Eric Clapton, Wonderfull Tonight, que ele lhe cantara uma noite e que nunca mais conseguiu esquecer…e parece surgir do nada, nos momentos mais improváveis. A primeira despedida. O primeiro reencontro…e o último, 20 anos depois. A primeira vez que fizeram amor. A forma como o viu afastar-se, porque estava tão crente de que não podia voltar a arriscar numa relação. A desculpa dos filhos, como se a vida de uma mulher se pudesse resumir a procriar. As lágrimas derramadas sozinha na cama, consequência da decisão de abdicar do único homem que a tinha feito sentir-se única, linda, fascinante.
E por fim…
O vislumbre do que o futuro lhe reservava. O beijo do novo e definitivo reencontro. O recomeço. O carinho omnipresente. As palavras verdadeiras de apoio que nos aquecem quando sentimos o frio da tristeza. A opinião sincera de quem simplesmente ama…sem nada mais querer em troca. O risco que todos nós devemos tomar quando parece certo e não errado! O sorriso que só ele sabia modelar na face dela! Como este que Cris tinha agora vestido ao ouvir a voz de Filipe do outro lado da linha, a dizer-lhe que ainda ali estava para ela! Que nunca deixou de estar!
E pensar…o que 30 minutos podem fazer quando verdadeiramente nos predispomos a aproveitá-los!